quarta-feira, janeiro 09, 2008

Palavras de Cal


"Aproximei-me do rio, da árvore velha e sentei-me. Passaram instantes em que o esperei, em que imaginei que ele pudesse não vir, em que o esperei a imaginar que ele podia não vir. O rio continuava o êxodo das coisas belas. Havia águas que eram crianças e que vinham para diante dos meus pés e que me diziam palavras frágeis que eu ainda não entendia, lamentos, lágrimas que eu ainda não entendia. Senti uma mão tocar-me no ombro. Voltei-me e vi o sol. Perguntou posso sentar-me? Sentimos a presença um do outro. O rio sentiu a nossa presença. O meu olhar ia com o rio. Havia uma aragem que trazia a água, que trazia o fresco da água. Senti os seus dedos no meu pescoço, na minha face, nos meus cabelos. Virei-me para ele. O seu rosto aproximou-se. Os seus lábios aproximaram-se lentamente."

excerto de "A Víúva Junto ao Rio"
in "Cal" - José Luís Peixoto



Idade em que os afectos estão mais amadurecidos, a velhice acaba por ser uma viagem muitas vezes vivida em ruidosa solidão, na proximidade de um fim que se quer longe e que se tenta fintar, "tornando-se a criança"... Viagem pontualmente polvilhada de personagens "menos velhas" que olham os "velhos" mas não os vêem, que os ouvem mas não os escutam...
"Cal" é um conjunto de viagens às vivências da velhice. Viagens às vezes trágicas, outras melancólicas ou até... cheias de ternura! É bom descobrir autores que nos fazem "Sentir"... e cuja escrita é uma verdadeira lufada de ar fresco.


"(...)
- Estes campos não são nada pequenos. Não admira que, às vezes a gente se senta tão sozinhos.
- Eu acho que não é por os campos serem grandes. É porque a gente já vimos tanta coisa. A gente pára-se a olhar para estes campos e distinguimos na terra uma pequena parte das coisas todas que já vimos, e depois, quando voltamos a olhar, não está lá nada. Está tudo vazio. Por isso é que a gente se sente sozinhos às vezes.
(...)"

excerto de "À Manhã"
in "Cal" - José Luís Peixoto


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