quinta-feira, setembro 27, 2007

Rafael

Dedicado ao (muito) pequenino Rafael...


"A Virgem e o Menino"
Rafael



Poema do Menino Jesus

Num meio-dia de fim de primavera
eu tive um sonho como uma fotografia:

eu vi Jesus Cristo descer à Terra.
Ele veio pela encosta de um monte,
mas era outra vez menino,
a correr e a rolar-se pela erva
A arrancar flores para deitar fora,
e a rir de modo a ouvir-se de longe.

Ele tinha fugido do céu. Era nosso demais
pra fingir-se de Segunda pessoa da Trindade.
Um dia que DEUS estava dormindo
e o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi até a caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro Ele fez com que ninguém
soubesse que Ele tinha fugido;
com o segundo Ele se criou
eternamente humano e menino;
e com o terceiro Ele criou
um Cristo eternamente na cruz
e deixou-o pregado na cruz
que há no céu e serve de modelo às outras.

Depois Ele fugiu para o Sol
e desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje Ele vive na minha aldeia, comigo.
É uma criança bonita, de riso natural.
Limpa o nariz com o braço direito,
chapinha nas poças d'água,
colhe as flores, gosta delas, esquece.
Atira pedras aos burros, colhe as frutas nos pomares,
e foge a chorar e a gritar dos cães.
Só porque sabe que elas não gostam,
e toda gente acha graça,
Ele corre atrás das raparigas
que levam as bilhas na cabeça e levanta-lhes a saia.

A mim, Ele me ensinou tudo.
Ele me ensinou a olhar para as coisas.
Ele me aponta todas as cores que há nas flores
e me mostra como as pedras são engraçadas
quando a gente as tem na mão e olha devagar para elas.
Damo-nos tão bem um com o outro
na companhia de tudo que nunca pensamos um no outro.
Vivemos juntos os dois com um acordo íntimo,
como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer nós brincamos as cinco pedrinhas
no degrau da porta de casa.
Graves, como convém a um DEUS e a um poeta.
Como se cada pedra fosse todo o Universo
e fosse por isso um perigo muito grande deixá-la cair no chão.
Depois eu lhe conto histórias das coisas só dos homens.
E Ele sorri, porque tudo é incrível.
Ele ri dos reis e dos que não são reis.
E tem pena de ouvir falar das guerras e dos comércios.
Depois Ele adormece e eu o levo no colo
para dentro da minha casa,
deito-o na minha cama, despindo-o lentamente,
como seguindo um ritual todo humano
e todo materno até Ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma.
Às vezes Ele acorda de noite, brinca com meus sonhos.
Vira uns de pena pro ar, põe uns por cima dos outros,
e bate palmas, sozinho, sorrindo para os meus sonhos.
Quando eu morrer, Filhinho, seja eu a criança,
o mais pequeno, pega-me Tu ao colo,
leva-me para dentro a Tua casa.
Deita-me na tua cama.
Despe o meu ser, cansado e humano.
Conta-me histórias caso eu acorde
para eu tornar a adormecer,
e dá-me sonhos Teus para eu brincar.


Alberto Caeiro (poema)
Maria Bethania (adaptação)


2 comentários:

Cristina Rafaela disse...

Muito belo esse poema, no Youtube tem o vídeo com ela recitando!

Rui disse...

eu conheço... :-)
é muito bonito mesmo...

http://www.youtube.com/watch?v=gWI1gs0dJYk

[mas há mais e também bonitos...]

 
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